Oficina de Pequenas Esperanças – O banquete oferecido pela Cia Vitória Régia

Foto de Alonso Júnior

*Pensando que vi uma peça e que construí impressões, escrevo. Mesmo sabendo que tudo já se transformou e deixou de ser. São invenções de sentidos escritos, imaginados, sem nada pretenderem ser. Invenções pra não deixar de ser.


"Sombras ao meio dia, são meninos e meninas que voam e voam, e não tem onde pousar suas formas e frutos, entre boeings e canoas. Espectros alcalinos e tísicos".


Juntemos às imagens-palavras de Aldísio Filgueiras, à bateria constante, nervosa e criadora, em plano sequência, no filme Birdman, do diretor Iñárritu, com as trovoadas, correrias e agitações típicas de um Shakespeare, que abre “o pano” devorando toda pequenez da vida cotidiana, todo resquício de mediocridade e alienação. É a partir deste momento que nada de pequeno permanecerá de pé, mesmo as mais ilusórias seguranças. E, o que é grande, profundo e misterioso, ainda está por ser descoberto, inventado. É Iogan Montefusco, quem conduz esta bateria de iniciação, trazendo à cena aves de rapina, representadas por Daniely Peinado, Gabriel Mota, Agnaldo Martins, ChiCOKAboco e Tainá Andes. Bateria, aves, agitação, correria, grunhidos, berros e pensamentos ainda tímidos sobre o que fazem acontecer a partir desta cena. Pelo menos até esta 3° apresentação da temporada. É certo que, com o passar do tempo, o significado destas presenças, vai ganhando espaço e fome nos corpos destes intérpretes, e lhes levando a um estado de violência e gozo, abrindo espaços no tempo, para que tudo seja devorado e reinventado, como é típico dos grandes momentos em um Teatro.

E que Teatro!? É no SINTTEL que estes espaços todos de narrativa e invenção, são inaugurados. Com um grupo de atores e atrizes veteranas e estreantes (essa mistura me parece fundamental no movimento teatral) orientados por uma experiente presença no teatro amazonense, brasileiro, de nome Nonato Tavares, a Cia Vitória Régia vem diante do público, lançar sua mais nova e original dramaturgia na peça A Pequena Esperança, do também ator e assistente de direção, Geiber Teixeira.

Acordes ao violão nos aterrissam na paisagem já pintada pela cenógrafa Emanuelle Figueiredo. Parece Manaus. Reconhecemos a ponte sobre o Rio Negro, a cúpula do Teatro, as torres das igrejas, as pontes sobre os grandes igarapés. Só não vemos árvores, nem na margem esquerda nem na direita. Um céu nublado ou, empestado de fumaça, coincidentemente semelhante ao mesmo céu que acompanhou a população de Manaus nas primeiras semanas de estreia da peça. Uma floresta que queima sem que percebamos, à caminho da paisagem pintada... Será?! As aves de rapina, agora sem gritos ou correria, parecem olhar nos olhos da plateia. São elas que revelam a grande tragédia, a morte da Pequena Esperança. Anunciam e estabelecem o tom de perda, de inação, semelhante ao posto pelo cenário, pelas cores escolhidas, pela luz (operada por Fábio Campos). São irônicas, são indiferentes, solidárias? São elas que, a exemplo de Shakespeare, também anunciam o cheiro de coisa podre no ar. Estariam elas à espera de algo? As mesmas que duvidam do preparo daquela comunidade para receber uma proposta de dinâmica democrática, seriam as mesmas que duvidam da capacidade do público de ouvir, ver e escutar o que se pretende transmitir em cena?

A peça começa com o pesar pela perda daquilo ou de alguém, que parecia sustentar aquele lugar e pessoas. É de um adeus que partimos. Para o quê, ainda não sabemos. E é nesse momento que, pela primeira vez o coro se reúne para cantar a despedida da Pequena Esperança. A grande matriarca daquele lugar se pronuncia. É Madame, que tomada por vozes, memórias e ousadias, lembra a todes o que aconteceu e o que ainda está por vir. Há sempre uma tragédia à espreita.

Tragédia anunciada, pressentida, e quem vem em seguida é um operário de nome Ormindo, representado por Cleber Ferreira. Homem cis, branco, vestindo um macacão, pedindo socorro. Reclama uma injustiça sofrida. Seu lamento não é o da tragédia, e nem do drama. Sua presença cheira à farsa? Um distanciamento, que não sei se é intencional no trabalho do ator e da direção, faz com que a dor não doa de fato e as intenções, não se esclareçam. Talvez as da personagem e as do ator? Quem sabe?! O que tem um ator homem cis branco a chorar? Quais são seus lamentos? Isto também é enredo? As personagens falam de seus intérpretes também? O Teatro serve pra quê mesmo?!

É Ele, com "e" maiúsculo quem inaugura outras esperanças para aquela comunidade que vive em meio ao lixo e à fumaça. Criar uma república democrática. E junto, promessas de vida próspera e confortável. O que julga não ter ali. O que tem ali? O que há naquela cidade suja, cinzenta, que cortou todas as suas árvores e poluiu todos os seus rios? O que há de bom numa gente que não protegeu seu habitat, suas riquezas, que só dançou, bebeu, transou, se alimentou do que tinha, quando tinha e nunca pensou no futuro? Um lugar sem religião, sem políticos, sem líderes, sem bons modos, sem ambição!? Quem vem dizer tudo isso? Quem nos olha apontando o dedo sobre o que não fizemos? Sobre o que não preservamos, sobre o que não cuidamos. Os suíços, os americanos, os alemães, os noruegueses, os franceses, os “paulistas”? São eles que nos alertam sobre o perigo global? São eles que nos oferecem um espelho de novo, pra ver o que sozinhos não conseguimos ver? Agradecemos? Nos entregamos? Seguimos? O que esta pobre cidade deve fazer? Uma bienal? Uma peça? Um livro? Um filme?

É Madame, a que recebe tomações, quem ouve tudo, recebe tudo, e grita de novo as mesmas ameaças, perigos e anúncios de tragédias. Ela repete o texto. Repete as histórias. Brada ao público que vê, brada aos personagens que lhe veem, aos atores com quem contracena. Um ímpeto criador, elucidador, de alerta, como fazem as atuantes brechtianas, na boa voz e intensa presença da atriz Koia Refkalefsky. É ela quem fala, preocupada e instrumentalizada, para ser ouvida. Entendida. Vista. Como pouco fazem atuantes mais recentes, de pouca experiência e ciência do ofício. Sua fala é pra si, pro outro em cena, pra uma plateia, cidade, classe. Quem tem ouvidos, que a escutem, que a vejam, que a percebam.

É pela presença de Koia, que não se deixa escapar, que entendemos a dimensão que é trabalhar com um grande elenco. Um poder poético, catártico, coletivo, que fortalece qualquer gesto, texto e intenção. Que se realiza na formação do coro. Coro de corpos, vozes, pensamentos, movimentos, cantos, que podem conduzir o universo inteiro para onde quiserem. Ou não representarem nada, caso percam a real noção do que é dizer um texto, um gesto, conjuntamente. Há uma procura da ação na palavra e da palavra na ação. O que me diz um corpo que "figura" no fundo da cena, mexendo em papéis e plásticos? O que sou quando, vestido de ave de rapina, perambulo pelo espaço cênico, onde personagens discutem seus direitos, anseios e temores? Quem sou eu quando, vestido de mim, profiro palavras de um operário com ideias democráticas, republicanas, a um coletivo de pessoas que catam no lixo o que comer, sem nunca ter garantias de nada? Quem sou eu quando canto, quando me movimento numa ideia de unidade? Existe figuração? Existe protagonismo? Que relação tenho com o que é dito? Com o que ouço? Com o que vejo "dentro e fora" de cena? Que relação existe no que digo, ouço e vejo, com as pessoas que vejo do palco? Vejo alguém? Onde me coloco, como me percebo? Sou um atuante submergido na sua personagem criada por um dramaturgo de muitas ideias e palavras a serem ditas? Quem sou eu no funeral da "pequena esperança"?

É na falta, na escassez que os heróis aparecem. Que os deuses são exaltados e bem vindos. E quem os anuncia, lucra e é bem visto. E aqui, eles podem ser operários brancos, cabeções alegóricos de personalidades políticas, grandes empresários, pastores, suíços, americanos, franceses, alemães... paulistas! As aves sabem onde isso tudo vai dar. Elas sentem fome. E esperam por comida. Apenas. Madame sabe onde isso pode dar, sabe que a fome tem muitas notas e dimensões. A pequena população que ali mora, sabe que não basta dinheiro, comida, roupas, placas luminosas, sinal de wi-fi, pix ou selfs de felicidade. A população dali, sabe o que importa. Fazer o que quer. Ser o que quer. Como quer. Onde quer. Sabem que estar vivo é o mesmo que ser livre. E a sobrevivência é pela liberdade! E que isso não se vende, não se compra, não se conversa. Se vive. Está. É. E é sabendo disso, que as "irmãs", mulheres de rosto marcante, marcado, maquiado, empoderado, "riscam a faca" no chão, empunham seus terçados, pra defenderem seus territórios, seus corpos, suas ideias e suas liberdades. Seja de quem for. São elas, bem como amazonas, que lideram o movimento de rebeldia e retomada. São elas que, com suas histórias, corpos e experiências, trazidas à cena pelas atrizes Socorro Papoula, Cybele Bentes, Sthéfanny Azevedo, e Isabela Lillo, enfrentam a tirania do capital. Compõe este corpo de mulheres também, a atriz Ana Carolina Souza. Quem traz a força dessas "irmãs" à cena? Quem reclama liberdade, poder, protagonismo, visibilidade? Certamente, nada do que vemos, existe apenas com palavras decoradas, marcas ensaiadas ou discursos transmitidos. São os corpos delas, suas vidas em cena, o que dá vida, relevância e experiência concreta ao que vemos, presenciamos. Destaque especial às atrizes Papoula e Cybele, cujo as histórias na Cia Vitória Régia data de muitos anos. Não por acaso, suas presenças em “A Pequena Esperança” tomam dimensões muito especiais, no que diz respeito à estética e beleza cênica. Escrevo isto pensando na força com que Cybele entra pela primeira vez em cena, na peça, empurrando seu corpo, músculos e voz com toda intensidade que a cena pede, como se tudo dependesse daquele momento. E sabe que depende. Não entra por entrar, não está por estar. Com outra qualidade de intensidade e presença, o mesmo faz Papoula, quando precisa proferir galanteios ao jovem Ormindo, ou xingamentos à comitiva do prefeito. Sua máscara de maquiagem carregada, borrada, sobre seu rosto de expressões marcantes, de alguém que já viveu muito, confere toda uma riqueza na presença e na transmissão daquele enredo, lugar e pessoas. É imensurável o privilégio que a Cia Vitória Régia tem, em manter em seu corpo de atuantes e colaboradores, pessoas como estas mulheres. Num país, estado e cidade, onde a profissão de artista é tão desvalorizada e nunca considerada, vale a pena aplaudir demais a persistência e generosidade destas artistas.

Vivacidade, fúria, desordem, rebeldia, persistência, teimosia e humanidade que brinca, que escarnece, que gargalha… Elementos servidos em abundância na encenação de Nonato Tavares. Não estamos diante de uma montagem límpida, irretocável, técnica, pura, cartesiana, aos moldes das grandes academias e costumes artísticos. Temos marcas, temos desenhos de cenas, temos escolhas gráficas na pontuação das falas, dos gestos, da dinâmica espacial das cenas... Temos muita inteligência, sagacidade e "guestos" no trabalho de direção, aplicados nesta peça. Porém, pensando que conhecemos a pessoa de Nonato Tavares, pensamos ter também o escárnio, o deboche, a leseira baré, a indiferença, o requinte que só um “corpo pitiú e mergulhado nas águas do rio negro”, saberia ter. E tudo isso está em cena. Como intenção, como marca, como desejo, como sonho, como Esperança. Parece ser tudo isso, o grande tesão transmitido à plateia, da qual faço parte. Não importam as ideias de bom teatro, de boa fala, de bom gestual, de uma ideia de acabamento apolíneo, ordenado, pra seguir uma lógica aplaudida por algum mercado ocidental. Aqui, sinto o teatro em carne viva, um teatro de chão batido, de terra e água se misturando, desenhando possibilidades outras, que não as do falido ocidente. Aqui não tem ocidente. Aqui não tem colonização. Aqui tem coração, suor, esperma, gozo, saliva, pensamento que é corpo, corpo que é pensamento, ideia que é tesão liberado, tesão que produz ideias. No Teatro da Cia Vitória Régia, o rigor é imprescindível, a disciplina indiscutível. Não há Teatro sem artista que pensa, que inventa, que cria, que constrói, que ensaia, que marca, que estuda, que se prepara, que se equipa. Não há teatro sem consciência crítica, envolvimento com o mundo. Na Vitória Régia não tem teatro de ar condicionado, carro fechado, escritório, sala de aula, academia ou salário fixo. Há trabalho. É preciso saber disso pra entrar em cena com a Cia Vitória Régia. Mais que saber, é preciso ter na mente, no corpo, nas ideias, nos movimentos, nos sons das palavras, a real noção de tudo isso. Caso contrário, alguma presença que não esta, vai gritar em cena, deixando claro que nada sei sobre aquilo que me ouviram dizendo, fazendo. É na plateia que tudo se resolve. Seja o que for, como for, chegou na plateia, está feito. Não há juízo sobre o que se sente em quem vê e ouve. Toda impressão, toda sensação sentida em quem assiste, é genuína, real. Sejam elas milhares, ou duas apenas. É desse lugar, também nada confortável, porém menos arriscado que o lugar de quem está em cena, que escrevo sobre o que penso sentir. Deste gabinete onde tenho tempo de separar as palavras, as emoções e, discorrer sobre, me pensando como que um colaborador. Mesmo sem autorização da academia, de outros escritores, dos colegas ou das regras todas a que deveria. Escrevo pela paixão, pela fome, pelo desejo infinito de ver, fazer e ouvir sobre Teatro. 

Feliz por poder acompanhar esta Companhia, que de longe, é a que mais me provoca neste
lugar. Por seu tempo de existência, por suas artistas, por seus temperamentos, por suas gaiatices e desbravamentos, meu amor, devoção, respeito e crendice na desvairada e "incompetente" Cia Vitória Régia.

Aplausos a esta Cia!! Coragem sempre! Uma cidade inteira celebrando “atuar pra poder voar”! Merda!






Dimas Mendonça


Manaus, Setembro de 2023

Comentários

  1. Belo comentário-Crítica de Dimas Mendonça, sobre o que viu e sentiu ao assistir ,e foi mais de uma vez, a peça encenada pela Cia Vitória Régia, A pequena Esperança -de Geiber Teixeira . Pra mim como parte do elenco é engrandecedor a riqueza de detalhes que Dimas descreve em sua crítica apurada, posso dizer que, é de uma generosidade e reconhecimento pelo trabalho que os atores desenvolvem e que nunca para de ser aperfeiçoado a cada apresentação. Muito obrigada Dimas, continue desenvolvendo esse trabalho crítico, muito talentoso. EVOÉ

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas