Lá nas terras de rainhas e penduricalhos

(*Escritos sobre dias de Fevereiro a Agosto)

Primeiro dia
Hoje atravessei a cidade de mala nos ombros. Uma grande mala. Mas ela estava vazia. Ao contrário da que carreguei em 2013 ao atravessar Brasília. O sol pareceu o mesmo. É quase verão. Festa na rua. Gente pra todo lado. Grupos nos gramados bebendo vinho, grupos de atabaques, bandas, artistas de rua, os idosos portugueses resmungando sobre o barulho, os carros e bondes que se travam nas ruas bem estreitinhas. E eu passo... aliviado, deslumbrado. Com o sol, com as pedras, com os casarios. Até com o sol. Quem diria. Com fones aos ouvidos, ouço música clássica, poesia, entrevistas de intelectuais locais. Me deleito a cada passo. Não saber para onde ir ou o que fazer é deliciosamente inspirador. Uma garrafa de água com gás. Os olhos bem abertos para o mundo. Tá ele, bem aqui. Diante de mim. E está tudo perfeito. A perfeição está em toda parte. A gente que, de tão imperfeito, é que a perdeu de vista. Inebriados com a ilusão de outra perfeição que não a que existe. Viva Lisboa... Viva o vento... as construções... o céu... o sol... A poesia de tudo... A fala de todos... e ao estado de não ter obrigatoriamente nada para fazer. Só estar vivo. Vivas a vida.

Segundo dia
Fones aos ouvidos... tênis nos pés... bolsa pequena, pouco peso... e mete se a andar desgovernado, desordenado, com nada planejado. Mete se a ouvir ópera pelos fones... a olhar perdido, os muitos prédios que rodeiam a tudo e, de repente se achar perdido. Depois ser achado. E já se ver em outro lugar. Pisa suave sobre as pedras dos mosaicos... passa a mão nas paredes dos séculos... olha atento às fachadas talhadas em madeiras... moldadas em mármore. Desvia do fluxo dos orientais, americanos, latinos, europeus, africanos... eles são bem parecidos. Falam outras línguas, mas caminham os mesmos passos, a as mesmas dores, alegrias, as mesmas manias, as mesmas violências... cometem, sofrem. Desvia deles, desvia dos tuk tuk, dos ônibus aquáticos, dos bondes lotados, das ambulâncias em sirene, dos artistas da rua, dos vendedores e garçons, desvia dos cafés que todos vão, desvia do sol que a todos queima e não... não entres jamais pela porta de um shopping center. Procura as ruínas... Procura uma sombra numa rua esquecida... num varal não fotografado... numa escada vazia... fica lá. Lê um livro. Ouve ópera. Ouve teu corpo. Tua fadiga. Ouve a pedra que sustenta cada monumento. Ouve o solo, sufocado pelas outras pedras. Respira. Descansa. Nem pensa. Só senta. E desvia. Sempre que não souber, festeja. Estás se desviando. E este o teu lugar. O do desvio. E com nada se acostumar.

Terceiro dia
Os brasileiros aqui estão sempre ao telefone. Tem sempre alguém do outro lado ouvindo histórias e paisagens faladas pelo telemóvel. Os brasileiros aqui nunca estão só, tem sempre um outro brasileiro do outro lado da linha ouvindo seu corpo e gritos... sim, gritos. Gritos de socorro. Interpretação minha. Gritos de solidão ansiosa, veloz, saudosa. Eles temem o desconhecido. Nada sabem deste lugar e não conseguem chegar de fato neste lugar. Eles falam pra não morrer. Eles falam pra não enlouquecerem. Eles falam. Eles falam. Eles falam. Agora mesmo, enquanto tomo café e como pão no mercado, um moço de aproximados 50 anos, descontrolado, ri alto e se agita, descrevendo Lisboa para uma tal Marina... lá no Brasil. Ele fala de tudo. Parece saber tudo. E Marina parece não ter vida por lá, como ele parece não ter aqui. Parece até que nem existe nenhuma Marina. E segue o homem a falar.

Quarto dia
Nunca tinha estado numa lavanderia self service até chegar em Lisboa. Esta é a segunda vez. Lembro da primeira vez em que a funcionária, de origem Angolana, falava alto ao celular enquanto orientava os novatos, como eu. Dominava todo o espaço. Gigante em sua já exuberante existência. Gentil, sincera. Real. Ela era real. Hoje, diferente do primeiro dia, tem outras protagonistas no ambiente. Duas camareiras de hotéis das proximidades chegam pra secar suas roupas. Parecem personagens de filmes com histórias em hotéis. São portuguesas. Ao perceberem as secadoras ocupadas, com uma das máquinas desocupando, se atiram à secadora para tirar os lençóis e toalhas de outro hotel e se põem a dobrar tudo... oferecendo a gentileza à funcionária da lavanderia, com muita espontaneidade e alegria. De repente um pequeno espaço com pessoas desconhecidas, vira festa. Incrível. Quanta energia e disposição a olhar o outro, olhar o mundo. Os mundos. Elas dobram. Perguntam. Riem. Vivas demais. Admirável. Depois conseguem colocar os seus lençóis numa máquina. E continuam dobrando os lençóis dos outros hotéis, enquanto os seus secam. Uma faz festa e a outra, sua parceira, se esconde. É mais tímida. Igualmente belas. As três. A funcionária, gentilissima também... festiva e barulhenta... Hoje está quietinha diante de uma mais que ela. Diferente da primeira vez que gritava ao telefone, ao mesmo tempo que gritava a um cliente, de mesma pátria que ela. Toda alegria. Toda humana. Gente bonita estas todas... que não eu. Eu só as via. Escrevia.

Quinto dia
Me chateia a forma como os turistas tudo querem saber sem nada procurar. Nada é descoberto pela experiência mais. Tudo precisa ser dito, adiantado, sabido por um roteiro eletrônico ou por um guia, que tudo revela... à distância, apontando longe o que é, por que é e como é. Quanta pobreza nessa gente. Gente preguiçosa, eletrônica, mecânica, industrial, artificial. Nada é de verdade em suas caminhadas. Gastam fortunas nas suas viagens rápidas, corridas, compradas. Visitam museus que lhes mandam visitar, vão a restaurantes onde lhes mandam ir, correm pra fazer tudo, tirar foto de tudo, andar em tudo e não se relacionar com nada. Nem com eles mesmos ou com seus companheiros... muito menos com as cidades que visitam. Pobres. Miseráveis. A miséria do novo século... desta nova vida que nada representa mais. Eu olho tudo... respiro tudo isso... ouço os milhares de sons que os tais artistas de rua produzem a nível industrial e me calo... Nada é mais verdade em lugar nenhum. Tudo é fabricado. O som das cidades não são mais das cidades... são de qualquer coisa e qualquer lugar. Eu me canso do mundo daqui também. Pois não é mais mundo... Não é mais gente. Não sei o que são. E por verdade, entendo ser aquilo que é feito do coração. Sem maquiagem. Sem trambicagem. Sem usar das coisas só pra ter vantagem. Parece que verdade mesmo, só vai ter onde não tem ninguém.... onde não há nada. Eu encontro essa verdade quando ando sem rumo, quando me perco... quando vou em silêncio... sem ninguém mandando... sem ninguém guiando. Encontro a verdade. Na dona da doceria que está fora do roteiro. No senhorzinho de boina e bengala que passa ligeiro. Na dona de casa que bate o tapete na janela. Em quem não sabe que está sendo visto. Como deve ser na floresta... quando se perde por entre o desconhecido... Por entre o mistério.... o perigo... e descobre se a beleza... o universal... o sublime... o pleno. Há muito que deixar de fazer para poder se encontrar tudo isso. Eu me calo aqui.... ponho os fones de ouvidos fabricados, industriais e me protejo com operetas e sinfonias clássicas do Ocidente... visualizando a cidade, o tempo, os corpos... de um jeito romântico... saudosista... sensível... lírico... cênico. Como sou e gosto de ver tudo. Ou isso... ou o nada de tudo... o resto já me cansa, me fadiga... me mata. Olhem só... se não sou eu também o perdido. Que nada mais tem de verdade, se não as que eu fabrico. Deixa pra lá os juízos. E só bom domingo.

Todos os dias
Registros rápidos de uma caminhada longa, de meses, de nervos e sapatos gastos. Impressões que não dão conta nunca, da imensidão que é cada ser humano, cada pedacinho de chão daquele velho, saturado e acostumado continente. 

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