Medo do quê?




Alguma coisa tem acontecido em mim
Que algum medo tenho deixado ir
Eu sei bem que eles continuarão
Mas sei melhor que muitos deles me deixarão

Não faz muito tempo
Na infância
A premissa era de que nenhum mal me abalaria
Praga nenhuma me chegaria
Eu pensava, achava que entendia
E tudo isso repetia
Mal nenhum me abalará
Nenhuma praga em mim chegará
Mas era dobrar a esquina e de medo me tomar
Que aquela ladainha do meu lado caminhava
E quanto mais eu repetia
Mais ela não ia me largar
E quanto menos ela me largava
Mais medo me borrava
Pensava eu
Tinha Deus
Ladainha e coisas da palavra
Mas saca só
Em mim a palavra não habitava
Não tinha corpo
Não tinha fala
Não tinha razão, não tinha identidade

Eu nunca ia entender esse troço
Trancado naquela casca
Era tanta ladainha sem corpo
Sem fala
Que em nada adiantava

Do lado de fora
Em processo de desforra
Descasca
Eu vi uma parente
Parte dos povos originários
Ela segurava um curumim
Enquanto levava porrada dos guardas
Era ela e mais uns vinte
Pouca gente, mas muita coragem
Gritavam para serem ouvidos
Por um pouco de terra e mais nada
Ela sabia que outros já tinham morrido
Morreram há quinhentos, uns milhares
Uns milhares de milhões
Há uns vinte dias
Mais umas centenas
Mas ainda não passou nas televisões
Ela sabia de tudo isso
Nada que lhe ferisse os ouvidos
Nada que lhe impedisse de lutar
A mulher com o curumim nos braços
Sem medo de continuar
Empurraria o que tivesse que empurrar
Gritaria o quanto tivesse que gritar
Morreria quantas vezes a quisessem matar
Ela não ia se abalar
Praga nenhuma ela iria aceitar

Caralho

Essa mulher nem sabe lutar
Não anda armada
Mas é toda invocada
Aí lembrei dos outros parentes
Que na luta por outra resistência
Também enfrentaram penitência
Os irmãos torturados até a morte
Que se recusavam a delatar
Os que com eles, defendiam
O direito de se rebelar
Era a ditadura burra
Que a quem pensava diferente
Tentava parar, calar e matar

E esses outros parentes
Se recusavam a parar
Se recusavam a se calar
Se recusavam a delatar
Torturados até morte
Nunca conheci
Gente de igual coragem
Sem medo nenhum que os travasse
Eles seguiram firmes no combate

Medo barato
Ter o tênis roubado
O celular levado
Alguns trocados arrancados
A minha vida eu amo
Se puder evitar, meu sangue não derramo
Mas ficar rendido
Antes mesmo de alguém me render
Olhar assustado
Pra todo mundo que passa do lado
Medo no escuro
Medo na cidade
Todo mundo me assalta
Todo mundo me mata
Todo mundo me ameaça
É a televisão ensanguentada
Que me atormenta
Até quando está desligada
Me desliga do real
Quero matar a geral
Tudo parece fatal

Mas mortal mesmo
É o meu próprio peso
O medo que levo como peso
O medo oferecido
O medo goela a baixo
Descido
Estremecido
Desapercebido
Aborrecido
Entorpecido
Vacilei. Me pesei. Aceitei.

Mas alguma coisa tem acontecido em mim
Algum medo tenho deixado ir

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