Selma Bustamante Sem Legado



Nesse mês de Outubro
Neste ano de 2019
Selma Bustamante completou 64
Mas antes da festa
Como gosta de surpreender
Se saiu fininha
Emburrada
Nervosa
Se saiu
Sem ninguém ver por onde
Atavitada
Resmungada
Violada
Não queria ser guardada
Inutilizada
Pavor de ser cuidada

Desbocada
Mas muito bem educada
Colocada
Informada
Amada
Podia perguntar
Selma tá?
Da parte de quem? O que quer?
Perguntava, sem tempo pra perder
Nem todo mundo ia atender
Descansar, lavar o cabelo, ir na feira
A natação
O professor gatão
Até de nadadeira
Descendo a ladeira
Mas não venha com leseira
Ela sempre diria
Vocês são mais do que dizem os fofoquistas
Desocupadistas
Tenham o que fazer
Artista é quem faz
Que preciso não fazer nada
Regar as plantas, andar de madrugada, conversar com todo mundo, reinventar o nada
Um furacão de mar galáctico imortal
Imparável
Imensurável
Inviável

Selma Bustamante
Errante convicta
Aventureira destemida
Catou Edgar nas rodas de um Vento Forte
Embarcou num barquinho de papel
E com sopros delicados da imaginação de um velho Krugli
Subiu vida à baixo
Pra outras direções que não as do eixo
Não suportava essa história de eixo
Queria o que não conhecia
O que não tinha
Mas tinha tudo
Essa curumim cunhatã
Rasgada de sonho e vida
Tumultuada de imaginação
Humanazinha que só vendo, estando
Trágica
Ligeira
Veloz
Veio até todos nós
E se deu muito mais
Do que podíamos entender
E nunca quisemos ver
Ela não se deixava ver

Foi minha casa
Foi minha luta
Foi minha colherada de feijão e salsinha
Fazia feijoada
Fazia bife a rolê
Mas só comia tofu
Missú
Sementinha de gira sol
Qualquer farelo ou caldo
E o diabo da coca cola sempre do lado
Amassado
Enlatado

Me deu muito mais do que sabia que precisava
Me olhava e já sabia
Qualquer coisa que eu tentasse não dizer
Faceira
Faladeira
Foi lá onde teve berço que fui acolhido
Escondido
Nutrido
Vi sua árvore gigante no antigo quintal
Vi seu portão pulado na antiga casa
Vi seu quarto guardado na nova já velha casa
A que, procurando
Ela se balançando no meio da rua
Pra que eu não me perdesse
Coitado
Vi as ruas do seu bairro antes de ser modernizado
Acaixatado
Infurnado
Povoado
Tumultuado
Gourmetizado
Apinheirado
Vi sua escola
Vi seu grupo correndo
O mesmo grupo jantando em sua casa
Jovens animadas senhoras
Selma se deslocava
Se descolava da parte senhora
Das jovens animadas
De qualquer mundo lá fora

Falava com tudo e com todos
Visitava a vizinha a procura da tvzinha
Ficava horas conversando
Falando
Tudo entendia
Sobre tudo falava
Cadê tua mãe menina
Tá em casa, coitada
Ela já chegou no mundo inadequada
Avantajada
Superada
Era muito maior que tudo que a esperava
Estava mundos na frente de todos nós
Nunca a superamos
Nem sua mãe
Nem seu pai
Nem seus irmãos
Nem seus sobrinhos
Nem seus amigos
Nem seus inimigos
Nem ela mesma
Nem Deus a suportava
E ela o mesmo falava
Mas das crentes e espiritualizadas
Nunca conheci outra mais devotada
Disse Edgar
Disse eu
Necessitava concordar
Para o seu altar
Ela trouxe a todos
Sem nunca nada indagar

Foi tudo numa fotinha
Nove Selminhas loirinhas
Pareciam presas na estante
Num quadro
Há 55 anos de distância
Mas tava é vivinha
Selminha tava na Selmona de todo dia
E ia e vinha Brasil de baixo à cima
De Rio a mar
De floresta a sertão
Pra Cuba
Ela sabia onde melhor batia o coração
Mulher danada desde pequenininha
Se contasse
Nada aqui caberia
Foi coisa demais
Foi longe demais
Em cada um de nós
Foi fundo sem pedir licença
Que falta essa danada me faz
Nem perguntava nada
Nem pedia nada
Só estava
Só falava
Só olhava
Só existia
E tudo descortinava

Pizza
Esfirra
Massa
Alite
Rabanada
Sem emoção barata
Não vem com fala esvaziada
Perto dela
Sentimento era prática
Ação esfomeada
Nada de reboco
Maquiagem
Adorava um caboco
Criolo quando era criolo
Escolhia e se deixava escolher por todo garoto
Danadinha
Bela sim, recatada não se achava
Não travava
Intensa, real
Totalmente animal
Inteligência fenomenal
Faz tempo infinito
Que não vejo nada igual

Não falava emoções
Não dizia sentimentos
Agia
E tudo por qualquer um fazia
Comprava todas as inutilidades que podia
Só pra ajudar quem lhe pedia
Deu esmolas
Conversou
Parou
Dançou comigo ao som da Viola
Tocada na pressa Paulista desvairada
Segurando uma rosa branca
Comprada na calçada
Dançamos
Ela não via nada
Eu admirava
Toda encantada

Me ensinou tanto
Me mostrou tanto
Vai curtir Sampa Rapazão
Deixa de ser bobo
Para de encher tua mãe
Todo gatão
Vai logo atrás dele
Não perde não

Vai ser feliz

Falava, estava
Era só o que ela queria
Era só o que ela dizia
Era só o que ela nos fazia
Vai ser feliz

Selma construiu tantos mundos por onde passou
Passou por tantos outros mundos
Nunca os desmontou
Ignorou
Sempre respeitou
Esperou
Mas sempre alfinetou
Se calou quando calou
Nunca devia nada
Nem calada nem cansada
Foi longe e levou pra longe todo nós
Nós, os Selmados
Dominados, apegados, grudados dela
Os que nada sabiam fazer
Os que nada sabiam ser
Antes dela
Com ela
Nos levou longe
Nos levou fundo
Sempre perguntando
Nunca recusando
Nunca condenando
CRETINOS
Era como nos chamava
Amava

A bonita era amada por tudo
O que era menino
O que era menina
Baião de dois pra mais de vinte
Cinquenta
Selma não se aguenta
Junta todo mundo e reinventa todos os segundos

Feiticeira
Gostosura
A preferida dos malucos
Desde pequena, nunca foi pequena
Deitava na rua
Na frente dos colégios
Cinco horas da tarde
Na sombra quentinha
Na pracinha
Ela e Kandura
Uma falava a outra olhava
Alunos apuberdados
De olho na velhinha ficavam
Parecia nada, parecia tudo
De perto ninguém se afastava
Mudos
Fascinados
Dela ninguém se afastava

Toda teimosa, glamourosa, gostosa
Essa foi querida
E que ninguém a dissesse querida
Odiava lamúrias
Patafúrdias
Das boas e das ruins
Sentia o cheiro de manga estragada
Se vinha de longe ela já sentia
Falo manga querendo dizer gente
Gente em quem não se confia
Coisa que ela nunca diria
Gritaria Gente
Sentia cheiro do estrago de alguma gente
Gente disfarçada de gente
E gritaria gente estragada
Em quem não confiava
Pobre gente desinformada
Faltará ela nos dizer o que pensa
Ficaram só elogios na dispensa
Mentiras
Aparências

Telhado da PUC
Briga com polícia
Escárnio com militar
Protesto em todo lugar
Ditadura
Se gritavam se ajuntar
Ela logo estava lá
Meio Ajuricaba
O mesmo que a fez vir pra cá
Se gritavam justiça
Ela logo se posicionava
Fez aula com Zé Celso
Viu peça do Oficina
Fez aula com Boal
Tava no Arena
Fez aula com Antunes
Macunaínêmica
Fez aula com Amir Haddad
Descobriu o que já tinha faz tempo
Liberdade
A arte
A fertilidade
E foi só o que fez
Contaminou quem chegasse
Contaminados ficamos
Antes e depois que nos deixasse

Pobres jovens encantados
Abestalhados
Do Brasil
E das manauaras lesadas
Animados com a web
Digital e virtual
Ligados na tomada
Animados com seguidores e curtidas
Almejando fama
Reconhecimento e seletivas de editais
Coitados que nada sabem de nada
Querem fazer Teatro
Mas suplicam por um elogio
Se rasgam
Se brasam
Se atacam
Vão tudo tomar no cú
Seus incubados desinformados
Teatro é o que primeiro acontece no fundo
Lipem a cara
Entreguem se às taras
Libertem suas travas
Enxuguem suas babas
Deslumbres
Arreganhados para a barbárie
Tudo compram
Tudo aceitam
Tudo enfeitam
Tanto luxo mal dizido
Falido
É no lixo que se faz um artista
Ela diria
Repetiria
De algum outra artista nos trazia
Idade
Sabedoria
Porra nenhuma
Ela também diria

Ego
Ególatras mal amadas
Ninguém precisa nos amar
Nos aplaudir
Nos selecionar
Nos contratar, autorizar, homenagear
Descubram o amor por si próprios
Se desviem dos aplausos empolgados
Das seleções incriteriadas
Surrupiadas
Amizades editais curadas enganadas
Gerais
Se autorizem a não esperar homenagens
Legado é o cacete
Comam se em seus próprios banquetes
Ela diria
Repetiria
De algum outra artista nos trazia
Idade
Sabedoria
Porra nenhuma
Ela também diria

Selma sai assim
Sem querer nada
Sem pedir nada
Achando não ser nada
Calada
Falada
Calada forçada
Emburrada
Nunca conformada
Amada
Profundamente amada
Superficialmente lembrada
Sempre
Fundo
Do encontro das águas
Ao centro das rodas nas praças
Vai tartufar comigo
Vai processar o diabo desse natimorto
Até eu me cansar e sair também de fininho
Morto
Ah eu aprendo
Olhando pra ela aprendo
Desentendo
Não me arrependo
Escreveria com ela
Sobre ela
Para ela
Até ela sobreviver reviver me fuder
Sobrevive
Revive
Deixou tanto em mim
Que vai ser longa a vida
Ela em mim eu nela
Muitas sequelas

Vê se ajuda daí
Sei lá de onde
Talvez só seja aqui
E já foi bom demais
Floresta
Rio
Índio
Caboclo
Nosso céu espetacular

Até todo dia
Minha rebelde em luta
De todas as causas

Aproveita Rapazão
Love You
Disse ela depois de me enviar Arrelia
Como seu pai lhe dizia
Antes do final do mundo
A que entramos todos
Sem fundo
Sem anestesia
Sem maresia
Sem ela
Que tudo dizia
Fazia
Vazia
Presentificazia


P.S.. Selma como corpo físico morreu no dia 5 de Março deste ano. Eu estava em São Gabriel da Cachoeira inventando sonhos alimentados por ela. Selma foi a pessoa que mais me alimentou. Na alma, no corpo e no desconhecido. Aconteceu. Nunca combinamos nada. Foi minha professora de Teatro quando dos meus 16 anos. Estranha por um tempo. Admirada. Observada. Via suas peças, ouvia seus debates, me divertia com seus atores. Tinha no altar ela e o seu Edgar. A incrível professora paulista, fazia tudo diferente de todo mundo. E não era nada. Parecia nada. Me encantava. Fui em sua casa pegar um livro oferecido por ela. Nelson Rodrigues. Suado e espremido de vergonha, fui e voltei engasgado. Envelhecemos. Ela mais incrível que nunca. Perdeu Edgar, sua mãe... seus atores... seu grupo. Inventou tudo de novo, e por sorte, eu estava por lá. Muita sorte. Foram anos de amizade, confiança e colaboração intensa e direta dela sobre quem eu ia me tornando. Me hospedou por anos em sua casa paulista. Lá descobri outras Selmas. Nas fotos, nos móveis, na memória da casa de sua família. Lhe pintei um quadro sem face. Ela não cabia. Lhe dei flores, tortas, cartas. Ela não cabia em nada. Sobre isso nada me falava. Não se aproveitava de nada. Se desviava sempre. Nada a segurava. Quando seu corpo morreu, eu estava longe. Mas desabei. Totalmente. Tudo em mim desabou por semanas. Fui ao estrangeiro, ao desconhecido. E em todos os lugares em que estive e vivi, desabei. Ela sabia de tudo. Estava comigo antes e durante. Me viu desabado. Deve ter rido muito. E dito isto: VAI FUNDO RAPAGÃO. APROVEITA TUDO. Lhe lancei flores no Rio Negro antes do Solimões. Lhe deixei flores nas portas do Teatro do velho mundo. Lhe mandei beijos das montanhas onde subi. Lhe dancei gestos nos mares onde me banhei. Aproveitei tudo. Como ela disse. Como ela queria. Agora estou escrevendo. E tem mais coisa pra escrever, pra fazer, pra dizer em nome dela. Eu e os Selmados. Toda a gente que sabe que nada será o mesmo sem ela. Te amo Selma. Obrigado. Vem junto que é pra você. Com você. Beijos.

Dimas,
seu Cretino impreferido, sem talento.





Comentários

  1. Uma merecida homenagem a uma pessoa tão especial, todos podem esquecê-la um dia, mas seu legado será eterno e continuará com as pessoas que ela "contaminou". Parabéns pelo texto.

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  2. Que espetáculo de texto meu amigo..que SAUDADES QUE SAUDADES VOCÊ DEIXOU SELMA..

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